terça-feira, 11 de novembro de 2008

Praia do Rosa -SC



Benditas sejam as baleias-franca. Elas voltam todos os anos, cada vez em maior número. Os alegres surfistas também. As baleias vêm do Sul, em busca de águas mais quentes e chegam ansiosas para se acasalar. Os surfistas idem. As baleias são uma rotunda atração da Praia do Rosa, onde moram de julho a novembro, depois de dar bye-bye ao frio intenso. O mesmo se pode dizer dos surfistas. Não foi por caridade a escolha desse trecho do litoral catarinense para sediar uma das etapas do World Championship Tour (WCT), a Fórmula 1 dos surfistas profissionais. As ondas duradouras, a praia protegida por uma baía e, em especial, os moradores mereciam essa distinção. Se Drummond criou um poema para a rosa do povo, também poderia fazê-lo para o povo do Rosa.As baleias salvaram o profeta Jonas. E conheceram a perdição no sul de Santa Catarina. Ano a ano, centenas delas se viram vítimas de caçadores, carnificina iniciada em 1741 por rudes imigrantes da Ilha dos Açores e encerrado somente em 1973, não por consciência ecológica - mas por falta de baleias. O surfe, por seu turno, foi o sopro de mudança do Rosa. Nos anos 1970, o número de moradores desse lugarejo, 90 quilômetros ao sul de Florianópolis, não chegava a trinta pescadores, embora a Rodovia BR-101 tivesse sido asfaltada no final da década anterior. Havia então apenas a família Rosa (eis a origem do nome da praia), a família de "seu" Dorvino, a de "seu" Antônio Pedro e a de "seu" Mané Chico.Então, vieram os surfistas gaúchos e, em sua esteira, pouco a pouco e, apesar da precariedade das estradas, o resto da humanidade. Os surfistas fugiam das lamentáveis praias de seu Estado de origem, dos dissabores da ditadura e do modo de vida imposto pelos pais. Na capota dos fusquinhas e das peruas, transportavam pranchas pequenas e também long boards, aquelas pranchas imensas, das capas dos primeiros discos dos Beach Boys. Além delas, traziam na bagagem o desprendimento, embora o choque com os pescadores fosse inevitável. "Seu" Antônio Pedro, 78 anos de praia, olhos vivos e apertados, lembra bem. A turma de surfistas impressionava pela destreza nas águas; sobretudo a quem, como ele, não sabia e não sabe nadar.Contra a invasão dos cabeludos de sandálias de dedo haveria só alguma desconfiança, não fosse um pormenor: as pranchas espantavam os peixes. Logo a divergência se transformou em "desinteligência", como registrariam os boletins de ocorrência - se tivessem sido lavrados. Aos olhos dos surfistas, os pescadores se tornaram pecadores. A golpes de remo, as pranchas dos forasteiros eram detonadas. Uma situação-limite. A solução foi estreitar o relacionamento e estabelecer uma regra: em dias de pesca, nada de surfe. Os surfistas enfiaram a prancha no saco e tiveram de acolher.Para sorte deles, a pesca no Rosa é sazonal, praticada sobretudo no inverno. Assim sendo, sobram tainhas na rede dos pescadores e dias intermináveis no calendário dos surfistas. Em especial, para aproveitar as ondas de até 3,5 metros do Canto Norte. Melhor explicar a geografia do Rosa. Bela como uma tenista russa, a praia tem 2 quilômetros de extensão, delimitados por duas pequenas penínsulas. Em uma ponta, o Canto Norte, espalham-se os surfistas e as gatinhas de shape irretocável. Quando os ventos mudam - e, devido a eles, também as ondas grandes -, a moçada se bandeia para o outro extremo da praia, o Canto Sul. Esse segundo trecho é, na maioria dos dias, utilizado por apreciadores de cerveja e da vida sedentária e abriga um restaurante gigante, o Casarão - "Barracão" seria batismo mais apropriado -, propriedade de dois irmãos nativos. Tal como Karamazov caiçaras, os manos passaram, nos últimos tempos, a viver às turras.O desentendimento financeiro suscitou a divisão do negócio, processos no fórum e uma parede interna no restaurante, espécie de Muro de Berlim, embora mais flexível: muda de posição conforme o humor dos donos e da Justiça. Já a península do Canto Sul não tem cerveja. Nem rusgas. Só os galpões de madeira dos pescadores e inscrições rupestres nas rochas, ainda desprezadas pelos arqueólogos e pelo Patrimônio Histórico. Entre um canto e outro do Rosa formou-se uma pequena lagoa, interligada ao mar. Graças a ela, as ondas são mais serenas, propiciando segurança às crianças e aos pais e democratizando uma praia freqüentada por interesses e faixas etárias diversas. Nesse trecho reinam dois bares-restaurantes, também em litígio familiar: pai e filho se digladiam na Justiça pela posse e pelos lucros. Gerente de um deles, Gabriela Heredia constatou um fenômeno: "Aqui em frente, em 31 de dezembro, você só ouve português. No 1º de janeiro, só espanhol". São os argentinos, desembarcando fiéis em sua preferência pelo meio da praia. Mesmo calados, é fácil diferenciá-los dos gaúchos. A cuia do chimarrão é menor e as costeletas, maiores.Mencionar restaurantes na praia pode induzir o estimado leitor a imaginar o beira-mar do Rosa apinhado de construções. Não é assim. Na prática, eles ocupam menos de 10% da praia. Além disso, seus donos tiveram a decência de limitar-se a um único piso. Essa ocupação tímida faz bem aos nervos, aos ouvidos e, principalmente, aos olhos. Com toda a licitude, o Rosa entrou na lista das trinta mais belas baías do planeta, galardão oferecido pelo insuspeito Club des Plus Belles Baies du Monde, com sede em Vannes, na França (detalhe: a Baía de Guanabara ganhou bola preta no clubinho, devido à poluição). É bom deixar claro: poupou-se a indiscriminada tomada da orla não em virtude de um louvável respeito à natureza, e sim devido à procura pelas melhores vistas da praia.Privilegiado pela topografia, o Rosa foi brindado com morros surgidos como prolongamentos do beira-mar. É fácil entender a razão de os surfistas terem comprado terrenos nas encostas. Naqueles anos 70, os preços ajudaram. Rogério Monteiro pagou uma ninharia por 4.000 metros quadrados. "Quitei a dívida à prestação, com uma parte da mesada", recorda, arrependido de não ter adquirido área maior. Renato Sehn foi ainda mais feliz. Comprou uma ilha inteira a meio caminho de Florianópolis - a Ilha do Papagaio -, onde mais tarde montaria sua pousada. Pelos 142.000 metros quadrados insulares, pagou à época 16.000 cruzeiros. Outra bagatela. "Um Opala cupê custava 20.000 cruzeiros", compara, riso escancarado.Assim como Rogério e Renato, outros surfistas foram adquirindo terrenos nas encostas. Não imaginavam o disparo da valorização. Muito menos a difusão do turismo. De posse do canudo de engenheiro, de jornalista ou de outra profissão de nível superior, eles passaram a levar a vida em alguma cidade grande até se dar conta da crescente demanda por pousadas e serviços na praia querida. Era o momento de trocar o paletó pela camisa florida, acomodar de novo a prancha na capota e tocar para o Rosa. Tinha de dar praia. Enfim, os veteranos surfistas voltaram. "Na maior", como se usava dizer no tempo dos fusquinhas. Quase todo o grupo aderiu ao ramo da hotelaria.Rogério Monteiro montou a despretensiosa e acolhedora pousada Studios do Barão. Bebeto Quintana da Costa criou a Rosebud, freqüentada por jovens surfistas. Roberto Deutrich inaugurou a Solar do Mirante, com impressionante vista panorâmica. César Pegoraro, o Bocão, ex-piloto de automóvel, trocou a velocidade das pistas pela tranqüilidade da bela pousada Quinta do Bucanero, construída em sete patamares. E assim por diante. O retorno resgatou a velha amizade. Unidos, os pioneiros das ondas do Rosa fizeram nova descoberta: as sandálias de dedo voltaram à moda. Assim como elas, também retornaram Brian Wilson (líder dos Beach Boys), as long boards e elas, as baleias-franca. Vale remontar essa história.Os bascos inventaram a caça comercial das baleias no século 9 d.C. Pelos onze séculos seguintes, o massacre só fez aumentar. De 1960 a 1967, foram mortas 433.120 baleias. Por fim, a caça diminuiu. Claro: as baleias estavam acabando. Ecologistas se organizaram. Deram o basta. Só nos anos 80, enfim, a legislação internacional deu cabo da caça, embora os japoneses a tenham feito em pedaços para continuar vendendo baleia aos pedacinhos - na forma de sashimi.Com o aposento dos arpões, ocorreu o óbvio. Não apenas o número de baleias se expandiu como também, mais seguras, elas ousaram se aproximar cada vez mais da orla. Assim acontece com as baleias-franca na região do Rosa. Há dez anos, quando o experiente surfista argentino Enrique Litman começou a oferecer passeios de barco para avistar os bem fornidos cetáceos, o trabalho era cansativo. "Tínhamos de navegar um tempão para ver raras baleias", relembra. Agora, basta meia hora de navegação e já se observam as franca, francamente à vontade. Em 2006, o Instituto Baleia-Franca computou 194 cetáceos da espécie. No ano passado foram 214. Para esta temporada, a perspectiva é auspiciosa.No dia 17 de junho foi registrada a primeira baleia, prenhe e sozinha. Existe uma regra internacional delimitando em 100 metros a distância para avistar baleias. Ela é cumprida à risca no Rosa, embora muitas vezes as franca sejam vistas a menos de 5 metros. Culpa delas. Amistosas e livres do temor de outrora, elas se aproximam do barco. Para ter o privilégio e a emoção de vê-las de perto, vale a pena tomar um remédio para enjôo (e encarar o sono, efeito colateral) e, ainda, enfrentar o balanço constante do barco inflável de fundo rígido, em mar picado. É um espetáculo grandioso. Na idade adulta, uma baleia-franca chega a 15 metros e 40 toneladas. Pudera. Quando nenê, ela bebe 200 litros de leite ao dia.A Embratur também descobriu as delícias do Rosa. Enfim a empresa estatal resolveu divulgar a praia em cartazes nos metrôs de Londres, Berlim e Nova York. Se, por enquanto, o número de americanos e europeus nem de longe se compara ao de argentinos, as perspectivas são saborosas. Além da praia, o Rosa conta com a Lagoa de Ibiraqüera, de um azul ainda não classificado na escala de cores. Também tem receitas próprias, como a lula recheada e a escalada, uma anchova secada ao sol, em um processo similar ao do jabá. Venha. Assim como as pranchas grandes, os velhos surfistas e as baleias, você também vai voltar.

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